sábado, 18 de setembro de 2010

A “nova família” se consolida


Em entrevista, a psicanalista e terapeuta Gladis Brun defende que novo modelo de família pode ser saudável e completo


Medos, frustrações, inseguranças: não há como ficar imune a esses sentimentos quando os pais se separam e refazem suas vidas com um novo amor. A família tradicional de pai, mãe e filhos ainda é vista por boa parte da sociedade como a única forma de sucesso. Mas é cada vez mais comum a formação de lares compostos por madrastas, padrastos, enteados, meio-irmãos, tios e avós “postiços”. Debruçando-se sobre esse fenômeno, a terapeuta de famílias Gladis Brun contou, há dez anos, a história do casal fictício formado por Alberto e Andréa, ambos divorciados e com filhos. O resultado foi o livro “Pais, Filhos & Cia. Ilimitada” (Record). Agora, no recém-lançado “Os Meus, os Teus, os Nossos” (Larousse), ela retoma o tema contando como o mesmo casal superou os obstáculos das questões financeiras, dos rituais, das expectativas de amar e ser amado e do relacionamento com os filhos das uniões anteriores.Aceitar a influência das mães biológicas, entender a importância dos avós e evitar a divisão entre "mocinhos" e "bandidos" são algumas das orientações da autora para a consolidação das famílias formadas a partir de recasamentos. Conversamos com Gladis sobre esta nova família – e sobre como torná-la pacífica e possível.iG: Por que você decidiu escrever sobre esse novo modelo de família?Gladis Brun: Há 10 anos, quando escrevi “Pais, Filhos & Cia. Ilimitada”, eu já vinha trabalhando com essa realidade nova há bastante tempo. Depois da legalização do divórcio, casar de novo se transformou numa maneira corriqueira de tentar ser feliz. O livro já falava de todos os problemas de duas famílias com filhos que querem tentar novamente investir em uma relação. O problema maior é que os adultos estão envolvidos em um projeto amoroso próprio e os filhos acabam envolvidos em um projeto que não é deles. Quando a Larousse se interessou em publicar de novo o livro, decidi contar o que acontece com uma família que se une e continua junta, pois o novo projeto tem tantos obstáculos que o nível de fracasso é bastante grande. Muitos não conseguem ultrapassá-los. Há estatísticas que dizem que o índice de divórcio dobra dentro dos recasamentos. Em terceiros casamentos, é ainda maior. Juntei o livro antigo e visitei novamente a família 10 anos depois para mostrar o que eles fizeram para dar certo.


iG: Como a realidade social mudou nestes 10 anos?Gladis Brun: Mudou na medida em que a sociedade vai conhecendo muitos novos casamentos e relacionamentos. A família não está em extinção, só que agora é permitido chamar de família composições diferentes, que fogem do simples “pai”, “mãe” e “filhos”. O recasamento é uma organização familiar de estrutura extremamente complexa. Compreende um maior número de avós, tias, irmãos e pessoas, muitas vezes estranhas umas às outras, que entram para o grupo, do dia para a noite, e são chamadas de “parentes”. Nesses anos, essas estruturas diferentes foram se incorporando à sociedade. Não existe mais muito preconceito. As pessoas têm que ser impermeáveis às mudanças para ainda terem preconceito.iG: Existe alguma maneira de passar por um divórcio sem mortos e feridos?Gladis Brun: Em um divórcio, todo mundo sempre vai sofrer. Mas passado o tempo de cicatrização, tem como todos serem felizes. Não existe anestésico eficiente para a dor de um divórcio. Interrompe-se uma vida para dar espaço a outros projetos. Se os filhos forem bem cuidados, haverá a cicatrização. Mas existem processos traumáticos que nunca se resolvem, por isso cada vez mais os pais procuram ajuda profissional de um terapeuta para proteger melhor os filhos. Se o processo for normal e saudável, em um ano ou um ano e meio as feridas se fecham. É importante ter um tempo de luto, de digestão e elaboração, para formar um sentimento de família novamente. Quando não tem intervalo entre a separação e o começo do recasamento, o preço que a nova relação paga é ainda mais alta.iG: Como criar um bom ambiente para receber filhos de pais ou mães diferentes?Gladis Brun: Hoje em dia estes lares são cada vez mais comuns. Quanto mais acolhedor for o ambiente, menos estressante será para todos. Convivem irmãos com sobrenomes diferentes, cosanguíneos, não cosanguíneos. Não é apenas uma neura, os desafios realmente são muito grandes. Neste cenário, os avós podem ser um fator poderoso de ajuda e proteção ou de desagregação e caos. Quando possível, eles devem ficar de fora dos conflitos. Mesmo ao suprir carências afetivas ou financeiras, isso deve ser visto como apenas circunstancial.iG: Qual é o papel que a madrasta deve assumir com os filhos do marido?


Gladis Brun: A figura da madrasta ainda é socialmente muito carregada de preconceito. Continua associada à viuvez e aos contos de fada onde ela maltrata a menina. É muito importante negociar os papéis durante o divórcio, para que as fronteiras sejam bem claras. O mais importante é a madrasta se dar conta de que esse preconceito afeta a relação. Ela e o parceiro devem estar muito unidos e serem agentes tranquilizadores para os filhos. No recasamento, as relações entre a mulher e os filhos de seu marido sofrerão, na maior parte dos casos, a influência da mãe biológica. Ignorar ou se iludir, pensando que essa influência não deve existir, cria ainda mais desequilíbrio.iG: Qual a transformação que acontece quando nasce um filho do novo casal?Gladis Brun: A chegada de um bebê mexe com as emoções, reacende inseguranças de uma possível repetição de fracasso. Mas essa criança é privilegiada, pois é a única dentro da família que tem pai e mãe juntos. Ela chega como uma metáfora da estabilidade da relação e da esperança de que dias melhores virão. A casa deixa de ser vista como provisória.iG: Qual é o maior erro que as pessoas envolvidas neste novo modelo de família costumam cometer?Gladis Brun: As pessoas estão sempre na busca da legitimação, de reconhecimento. É uma busca muito frenética, apressada, exigente. Existe a fantasia interna de que vai sobrar gente e não tem cadeiras suficientes para todos. Cada uma tem a necessidade de achar seu lugar desesperadamente. As pessoas precisam entender que o sucesso da nova família está na diminuição das acusações e cobranças e na convivência com as diferenças. E são as pequenas gentilezas que vão firmando os laços de amizade. Isso só acontece se existir boa vontade e cooperação de todos os lados. No recasamento, acontecem os apelos de lealdade: “não posso jogar nesse time, porque estarei traindo o meu”. Esta divisão por times e definição de mocinhos e bandidos dificulta a harmonia.
Livia Valim, especial para o iG São Paulo


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